O milagre em que nem a gente acreditava.
Fernando Brito, via Tijolaço
Hoje [15/3], se completam 20 anos do dia em que Cid Moreira, com seu ar afetado e seus cabelos brancos (nem os muito velhos se lembram dele de cabelos pretos), começou a ler o histórico direito de resposta de Leonel Brizola no Jornal Nacional.
Foi a penúltima vitória do guri que saiu de Carazinho para enfrentar o mundo, um quixote gaúcho, do tempo em que os gaúchos eram quixotes e provocavam os versos geniais do pernambucano Ascenso Ferreira:
Riscando os cavalos!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Para que?
— Pra nada!
Tinindo as esporas!
Través das cochilhas!
Sai de meus pagos em louca arrancada!
— Para que?
— Pra nada!
Durante 22, 23 anos, convivi com ele, 19 dos quais diariamente. Praticamente formei, com ele, minha vida adulta, pois era um garoto de 22 anos quando esse contato começou, numa reunião num apartamento na Rua Cabuçu, no Lins de Vasconcellos, subúrbio da Zona Norte carioca.
Deste convívio, de muita coisa mantenho reserva. Sei que estava ao lado de um mito – e via o mito nos raros instantes em que ele conseguia se despir do personagem que poucos minutos lhe deixava viver de outra maneira.
Mas chega a hora em que estes detalhes, que antes serviriam para a intriga e o desmerecimento político, só fazem enriquecer a trajetória de quem era, como ele próprio dizia, “o rei do improviso”.
Porque era assim: se tinha visão estratégica, Brizola não era um calculista, muito menos frio. As coisas iam acontecendo e ele, certo ou errado, farejava os caminhos, alguns exatos, outros não, mas todos coerentes.
O impacto daquele texto – minto, não do texto, mas de Brizola obrigar a Globo a ler uma mensagem sua – também não teve nada de planejado, mas resultou do inconformismo que ele, com seu exemplo, injetou em alguns de seus companheiros.
Um pouco antes de sua segunda eleição, Brizola passou a ser atacado, sistematicamente, com artigos em O Globo, escritos – ou apenas assinados – por um certo Alcides Fonseca, um ex-deputado estadual eleito do nada pelo PDT e que se bandeou para a oposição a Brizola e, daí, para a poeira da história.
Por orientação do querido amigo Nilo Batista, Brizola passou a pedir, um por um, direito de resposta em O Globo. E, ao pedir, tinha-se já de oferecer o texto, e a tarefa me cabia, porque os anos e anos escrevendo com ele os “tijolaços” me fizeram absorver um pouco do estilo e da alma inconfundíveis.
Doutor Nilo começou a vencer as causas, alguns artigos foram publicados e o “Fonsequinha”, como era chamado, foi despachado do jornal.
Já no governo, em 1992, Brizola dá uma entrevista, dizendo que por toda a sabotagem que a Globo fizera à Passarela do Samba, o prefeito da cidade, Marcello Alencar, deveria negar à emissora a exclusividade da transmissão do Carnaval.
Foi o que bastou para que o jornal O Globo publicasse um editorial violentíssimo contra Brizola – o título era “Para entender a fúria de Brizola” – acusando-o de senilidade – “declínio da saúde mental” – e por suas relações – sempre institucionais – com o presidente da República, Fernando Collor.
À noite, o Jornal Nacional reproduziu, na voz de Moreira, o texto insultuoso. Naquela noite, Brizola conversou com dois advogados: Arthur Lavigne e Carlos Roberto Siqueira Castro, seu chefe da Casa Civil no governo estadual.
No dia seguinte, Siqueira me chamou e disse que Brizola tinha me encarregado de fazer o texto de resposta, que teria de ser apresentado ainda naquela tarde. Falei com ele, que se mostrou completamente cético em relação ao resultado do pedido judicial e, como fazia quando se sentia assim, despachava o auxiliar: “Olha, Brito, você fala com o doutor Siqueira e façam como acharem melhor.”
Lá fui eu fazer o texto: tinha de ter três minutos, não podia ter “compensação de injúria” – isto é, devolver na mesma moeda os impropérios – e tinha de sair rápido, porque era uma sexta-feira (7 de fevereiro) e havia prazo judicial.
Chamei dois companheiros de velha cepa, que me auxiliavam na Assessoria de Comunicação do Governo, o Luiz Augusto Erthal e o Ápio Gomes, para cumprir um dupla função: anotar o que eu ditava e “segurar” a minha “viagem”.
Porque – começo aqui as difíceis confissões, que não são um segredo porque uma boa meia-dúzia de companheiros sabem disso – quando eu tinha de escrever pelo Brizola, eu não escrevia, “incorporava”. Parece coisa de doido? Não, e ele próprio sempre dizia: o bem escrito é o bem falado. E, na hora destes textos carregados, era assim que eu fazia, ditando, falando no ritmo dele, com o milhar de vírgulas e os períodos longos com que se expressava.
Era um exercício extenuante, massacrante, do qual não raro eu saía às lágrimas, mal conseguindo falar, de tão embargada a voz.
Qualquer redator publicitário jogaria fora o que saía disto, e com razão. Porque não era um texto jornalístico ou publicitário.
Era o Brizola, não eu.
Feito o primeiro texto, mandamos ao doutor Siqueira que fez algumas correções de bom-senso e um veto.
Eu não podia devolver o “senil” com que Marinho brindara Brizola. Mas isso eu tinha de devolver, ah, tinha. E aí saiu uma obra de engenharia redacional.
“Quinta-feira, neste mesmo Jornal Nacional, a pretexto de citar editorial de O Globo, fui acusado na minha honra e, pior, apontado como alguém de mente senil. Ora, tenho 70 anos, 16 a menos que o meu difamador Roberto Marinho, que tem 86 anos. Se é esse o conceito que tem sobre os homens de cabelos brancos, que os use para si.”
Na verdade, eu tinha escrito “encanecidos”, mas o bom-senso do Erthal me travou: “Pô, Brito, ninguém mais sabe o que é encanecido. É verdade, mas é o que o velho teria dito.”
Bem, o texto foi para o tribunal sem que Brizola lesse o que ele estava “dizendo” na resposta. Foram dois anos e um mês de espera pela Justiça.
Brizola levantava a sobrancelha, cético, quando Lavigne e Siqueira Castro, teimosos e dedicados, diziam que íamos ganhar.
Passou tanto tempo que, dos 70, Brizola já tinha 72 anos e Marinho, 88. No final do dia 9 de março chega a notícia da vitória no Superior Tribunal de Justiça, mas ainda havia um recurso possível e um “notificaram a Globo ou não notificaram?”. O ceticismo, confesso, era maior que a ansiedade.
No próprio dia 15, terça da semana seguinte, quando o texto foi ao ar, não críamos – nem eu, nem Brizola – que aquilo iria acontecer. Tanto que nem montamos esquema algum para gravar o Jornal Nacional, senão o de um videocassete doméstico. E foi o que se viu e que ficou na história.
Termina o texto, toca o telefone: “Olha, Brito, que maravilha. Nós acertamos o tiro no cu de um mosquito.” E assim foi. Não fiquei aborrecido, ao contrário. Porque era nós, mesmo: era o Brizola introjetado em mim que escrevera.
Elogio mesmo – e maior não poderia haver – foi o de Roberto Marinho,falando ao querido amigo Neri Victor Eich, da Folha, por telefone, no mesmo dia do terremoto: “Que nunca mais se reproduza isso. O direito de resposta teve o tom de Brizola.”
Teve sim.
E é essa é a última e inapagável vitória de Brizola, em vida e em memória, despertar muitas consciências que não se acovardam, não se ajoelham e não gaguejam, como a dele, a minha e a sua.
Até hoje, a não ser pelos testemunhos dos personagens desta história, a ninguém tinha revelado estes detalhes. Faço-o agora, porque já são história e porque só aumentam o tamanho de um homem a quem eu devo grande parte do que sou.
Um homem que era tão grande que estar à sua sombra foi também – e é para sempre – estar sob sua luz.
Assista ao direito de resposta.
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